sábado, 13 de março de 2010

Santa Joana de Catanduva

ou

Nós que amávamos tanto Jean Seberg


Nota: TODAS AS CENAS DE OUTROS FILMES MENCIONADOS NESTE ROTEIRO SERÃO RECONSTITUIÇÕES, MAIS OU MENOS FIÉIS AOS ORIGINAIS DE ACORDO COM OS OBJETIVOS DA OBRA E DAS POSSIBILIDADES DA PRODUÇÃO. NESTE ÚLTIMO QUESITO, HAVENDO ALGUMA POSSIBILIDADE, UTILIZAREMOS DE BOM GRADO UMA CENA ORIGINAL DE ALGUM FILME, PARA EMPRESTAR MAIOR “VERACIDADE” AOS REMAKES. OBS.: AS CENAS COM “JEAN SEBERG” USARÃO UMA DUBLÊ DE ROSTO E MANIPULAÇÃO DE IMAGEM.


Personagens:

Personagem (Homem da Voz off)
Menino 1
Jean Seberg
Ator
Diretor
Assistente
Câmera
Iluminador
Menino 2
Paramédico
Outros meninos

Atores dos “filmes”:

Maciste
Roberto Carlos
Rômulo e Remo
Mocinho
Bandido
Extras

Cena 1

Corpo caindo de um edifício. Queda é mostrada de cima e de baixo, do ponto de vista de pessoas vendo a queda das janelas do prédio, e do PV da própria pessoa que cai, vendo as pessoas nas janelas.

Cena 1/A (com takes intercalados à Cena 1)

Sucessão de desenhos - feitos com caneta esferográfica em papel manteiga - é projetada numa parede, num quarto escuro. Desenhos mostram, com traços mínimos, um bonequinho caindo de um prédio.


Voz de homem off:
Dizem que, quando a gente morre, a vida passa diante de nossos olhos como um filme.
Cena 2
Um homem com uma câmera de cinema rudimentar, sobre um tripé plantado entre os trilhos de uma estrada de ferro, filma um trem movido a vapor. O trem, vindo. O cinegrafista sendo atropelado pela locomotiva.

Voz de homem off:
Mas, e antes do cinema ser inventado, como é que as pessoas viam sua vida passar diante dos olhos no instante da morte?

Cena 3
Uma cena de ópera em fast motion.

Voz off:
Como uma ópera?

Cena 4
Seqüência de imagens silhuetadas em movimento rápido, entremeadas por tomadas do aparelho de sombra chinesa.

Voz off:

Sombras chinesas?

Cena 5
A cena da caveira de Hamlet, com os movimentos do ator acelerados.

Voz off:
Um drama de Shakespeare,...

Cena 6
Medéia mata os filhos em ritmo vertiginoso.

Voz off:
... uma tragédia grega?

Cena 7

Big close de um par de olhos apavorados.

Voz off:
E antes, bem antes, como é que as pessoas viam o retrospecto de sua existência?

Cena 8
Cenas “egípcias” (figuras de perfil) sucedem-se, com as figuras movimentando-se rapidamente. A última cena é invertida (mostrada também em contraplano).

Voz off:
Muitos veriam tudo assim, só de ladinho... Mas, já que não podiam ver o retrospecto de sua vida em perspectiva, será que pelo menos poderiam escolher o lado a ser visto? Ah, será que isso faria alguma diferença?

Cena 9
Baixos relevos com escrita cuneiforme e, depois, de desenhos rupestres pré-históricos. Cena fecha com a clássica imagem da mão decalcada na pedra (obra fundadora da história da arte). Por animação, a mão se mexe, na linguagem internacional dos surdos, dizendo qualquer coisa como “a gente se vê logo mais”.

Voz off:
Daí para trás, acho que a coisa ia ficar ainda bem mais difícil...

Cena 10
Cenas de um clássico conhecido do cinema, seguidas de cenas de uma produção C, tipo “Roma antiga” ou Maciste, culminando num filme do Roberto Carlos.
Voz off:
O fato é que, se eu pudesse fazer um último pedido, seria para ver um outro filme, que não o da minha vida. Qualquer outro. Qualquer, mesmo. Agora, se fosse pra escolher...

Cena 11

Cenas, de vários filmes, em que Jean Seberg aparece, incluindo “Joana d’Arc”, de Otto Preminger.

Voz off:
Gostaria mesmo de ver uma fita com os melhores momentos da Jean Seberg.

Cena 12

Fotos e pôsteres de filmes com Halley Mills, Sandra Dee, Marisol, Candice Bergen, Cláudia Cardinale, Virna Lisi, Leila Diniz, Adriana Prieto, Juliete Binoche etc, na parede de um quarto. Na cama, um adolescente se mexe em baixo de um lençol.

Voz off:
Primeiro, porque, mesmo que, depois, eu tenha me apaixonado intensamente por outras mulheres...

Cena 13 (11.1)

Big close com Jean Seberg. Rola uma lágrima em sua face (cena de “Joana D’Arc”).

Voz off:
... na verdade, amar, mesmo,... em toda a minha vida... eu só amei Jean Seberg.

Cena 14

Menino 1 olha através de uma fita de papel manteiga, onde estão desenhos feitos a caneta esferográfica.

Voz off:
E depois, eu sempre vivi minha vida como se fosse um filme...


Cena 14

Funde para close do mesmo menino, entre cinco e seis anos, chorando.

Diretor (off):
Corta!

Abre para plano geral, mostrando set de filmagem: em um estúdio, diante de uma câmera e sob as luzes, menino está no colo de um adulto. Diretor fala a assistente.

Diretor:
Muito bom, esta valeu! Valeu, pode desmanchar o set.

Adulto tira o menino do colo e passa a mão na sua cabeça, ao mesmo tempo em que fala.

Homem:
Grande garoto!

Close do menino chorando.

Voz off: E não tenho a menor vontade de ver esse filme de novo...


Cena 16 (7.1)

Big close dos olhos, agora aparentemente sem vida. Zoom out lenta mostra mão de alguém cerrando os olhos do morto. Corte para o corpo estendido na calçada. Ao lado, um caminhão dos Bombeiros e soldados da companhia. Chega uma ambulância. Paramédicos carregam o corpo para dentro do veículo, que sai, em disparada.

Voz off:
Mas, elo jeito, parece que não será ainda desta vez...


Cena 17 (7.2)

Corpo cai numa cama elástica, segurada por bombeiros. Olhos do homem ficam estatelados, de susto. Mão fecha os olhos. Bombeiros colocam o corpo em uma maca e o levam para a calçada. Chega a ambulância.

Voz off:
Afinal, até agora, que eu saiba, tirando uma cena ou outra, ainda não começou a passar filme nenhum...

Cena 18

O Personagem (homem da voz off) fala com o paramédico. Este, na verdade não presta a menor atenção. Pelo contrário, parece cochilar.

Personagem:
Aposto que você deve estar doido pra saber porque eu gosto tanto da Jean Seberg. É ou não é? Vamos, pode falar!

Cena 19 (1/A.1)

Bonequinho projetado na parede começa a subir, ao invés de cair. Agora vemos menino manipulando projetor artesanal, feito de madeira e com uma lâmpada com água no lugar da lente. Ele roda uma manivela de arame, que faz a fita, de papel manteiga, voltar no carretel.

Voz off:
Bom, para isso vamos precisar voltar um pouco no tempo...

Cena 20
Em seu quarto, menino desenha com caneta esferográfica sobre uma fita de papel manteiga. Enrola a fita em um carretel, que coloca num projetor de madeira. Liga o projetor a uma tomada. Desliga a luz do quarto e liga a lâmpada o projetor. Gira a manivela e projeta letreiro na parede:

Jary Filmes apresenta...

Voz off:
“Um pouco” é modo de dizer. Na verdade, é preciso voltar toda uma vida...

Menino gira novamente a fita. Na parede, aparece desenho com sete mulheres nuas e um homem no meio. Gira novamente a manivela. Aparece letreiro:

Sete Evas e Um Adão...

Voz off:
... para explicar a origem de minha paixão de toda uma vida por Jean Seberg.

Letreiro na parede desfoca e, no lugar, aparece outro, com tipologia moderna:
Nós que amávamos tanto Jean Seberg

Cena 21

Funcionário troca cartaz na frente de cinema: tira o cartaz de um filme do Maciste (com Gordon Scott, no papel principal) pelo de “Joana d’Arc”, de Otto Preminger, com Jean Seberg.

Letreiro: Catanduva, SP, anos 60

Voz off de Menino 1:
Pô, cara, tão tirando o Maciste de cartaz!

Voz off de outro Menino 2:
E eu só vi o filme três vezes!

Voz off do Menino 1:
‘Só’ três? E eu que não vi nenhuma!

Voz off do Menino 2:
Azar o seu! Agora tira o atraso e vê essa Joana d’Arc logo umas dez vezes!

Funcionário do cinema vê os dois meninos, de uniforme de escola e bolsas, se afastando, andando pela calçada. Agora eles são vistos de frente, falando enquanto andam.

Menino 1:
Dez vezes! Até parece que cinema é de graça! E essa Joana d’Arc deve ser o maior abacaxi!

Cena 22

Ladeada por dois soldados, Joana D’Arc, interpretada por “Jean Seberg” (dublê), sobe as escadas que a levam a um patíbulo ao fundo do qual está uma pira. Ao chegar ao último degrau, Joana olha para trás. Close em seu rosto, onde rola uma lágrima (manipulação de imagem a partir de foto, filme etc, com a Jean Seberg original). Joana vence o último degrau, caminha pelo patíbulo até a pira, à qual é amarrada. O patíbulo, que está sobre rodas, é então retirado e Joana é queimada. Cena se repete cinco vezes.

Voz off:
Foi a última vez que chamei um filme de abacaxi sem ver antes. Joana acabou sendo o melhor filme que eu e a turma toda jamais havíamos visto. Muito, muito melhor do que Maciste, As Escravas de Tróia, Os 400 de Esparta e os filmes todos do Joselito, da Marisol e da Halley Milss. E que linda que era a Jean Seberg! Claro, não deu pra ver o filme dez vezes, porque as minhas latas todas de peão batatinha, minhas coleções de Aí Mocinho, Diversões Juvenis e a super bola de cera de abelha jataí que era a maior de toda a turma só deram pra seis sessões. Agora: me pergunta se valeu a pena? Pergunta? Ô, se valeu! E eu até desculpo a brincadeira do Mirtolão na última sessão do filme.

Cena 23

Menino de seus 10 anos, pretinho e com cara engraçada.

Voz off:
O Mirtolão...

Mirtolão corrige, falando, bravo, para a câmera.

Mirtolão:
Milton Pereira de Santana.

Ainda a cara do Mirtolão.

Voz off:
O MIR-TO-LÃO era o meu melhor amigo. Baiano, mais velho que eu uns dois anos, era mais forte que o resto da turma....

A cara do Mirtolão cheia de esparadrapos.

Voz off:
... e o cara que podia até apanhar mas não deixava nenhum marmanjão relar na gente.

Cena 24

Balcão de um buteco do velho Oeste norte-americano. O “mocinho” bebe, junto ao balcão, de costas para os demais. Pistoleiro saca de sua arma.
Voz off:
Mas tinha uma coisa que eu não gostava no Mirtolão, que era a mania deles de, às vezes, fazer bagunça durante a sessão de cinema.

Fecha na cara do Mirtolão, gritando.

Mirtolão:
Aí, mocinho!

“Mocinho” saca a arma e alveja o fora-da-lei. Platéia de moleques cai na risada, olhando pro Mirtolão.

Voz off: Acho que era o jeito dele de se fazer importante.

Cena 25

Menino jogando peão: sua maria-comprida arranca todos os peões batatinhas casados no círculo de giz. Foto do menino exibindo sua bola de cera de jataí (do tamanho de uma bola de futebol nº 3).

Voz off:
Já o meu jeito era juntar peão batatinha e aumentar cada vez mais a minha bola de cera de jataí. Só que, no final, tive que vender tudo para ver Joana d’Arc quantas vezes fosse possível.

Cena 26

Garoto olha para seu bolão de gude como se fosse uma pedra preciosa. Gota de lágrima explode no bolão. Outro garoto vende pirulito na rua.

Voz off:
O fato é que cada um vendeu o que tinha e o que não tinha para ver a Joana D’Arc, quer dizer a Jean Seberg, quer dizer, a Joa...

Cena 26

Turminha entra no cinema andando de costas pela porta de saída, enquanto outros, de fato, saem.

Voz off:
Mas a nossa maior saída, mesmo foi entrar de ré... pela saída.

Cena 27
Joana sobe as escadas do patíbulo

Voz off:
E foi justamente na última sessão de Joana d’Arc, com o Cine Central lotado, na cena mais importante, que o Mirtolão soltou uma das suas.

Joana chega ao último degrau do patíbulo. Mirtolão grita:

Mirtolão:
Joanaaa! Ô, Joana!

JoanaD’Arc volta-se para trás. Mirtolão grita.

Mirtolão:
Não é nada, não!

Uma lágrima rola no rosto de Jean Seberg, que se encaminha para o lugar onde será queimada.

Cena 27 (18.1)

Rosto do paramédico, que fala, rindo. Depois, sério.

Paramédico:
Boa piada, boa piada! Mas agora eu preciso te dizer uma coisa, amigo: nós temos um regulamento e é preciso cumpri-lo. Seus quinze minutos de fama já estão no fim e agora você vai ter que ver o filme de sua vida sozinho.

Cena 28 ( 7.2)

Mão cerra os olhos apavorados.

Paramédico (off):
Se é que essa história de filme na hora da morte realmente existe...

Escuro. Letreiros escritos com esferográfica em papel manteiga projetados numa parede dão os créditos. Ao final, mão gravada na pedra (Cena 9) dá tiauzinho. Em um dos cantos da tela, a contagem regressiva dos segundos finais.

Música final: “Eu não matei Joana d’Arc”, com Camisa de Vênus ou nova versão.